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26 de março de 2021 (Bibliomed). Uma polêmica se abateu sobre o Brasil há 1 ano: tratamento precoce com cloroquina/hidroxicloroquina funciona na COVID-19? Até mesmo o presidente do Conselho Federal de Medicina agora entrou no assunto, isso numa semana em que pacientes morreram no Rio Grande do Sul, segundo a imprensa, após serem tratados com Hidroxicloroquina em forma de nebulização.
Em um debate impulsionado pelo presidente da república (e originado em terras estrangeiras, mais precisamente nos Estados Unidos sob o governo Trump) surgiram defensores ferrenhos do que se chamou de “tratamento precoce” desta terrível doença, com o uso de cloroquina/hidroxicloroquina.
Mas vamos aos fatos conhecidos. Os sintomas mais comuns da COVID-19 são a febre, tosse e problemas respiratórios. A menos que você tenha sintomas graves, após ter sido diagnosticado com COVID-19, provavelmente poderá tratá-los em casa, da mesma forma que faria com um resfriado ou uma gripe. A maioria das pessoas se recupera do COVID-19 sem a necessidade de cuidados hospitalares.
A coisa mais importante a fazer é evitar infectar outras pessoas, especialmente aquelas com mais de 65 anos ou que tenham outros problemas de saúde. Ou seja:
- Tente ficar em um lugar separado em sua casa. Use um quarto e banheiro separados, se puder.
- Diga aos outros que você está doente para que eles mantenham distância. Fique distante de seus familiares e outras pessoas da habitação.
- Cubra a tosse e os espirros com um lenço de papel ou com o cotovelo; use uma máscara sobre o nariz e a boca.
- Lave regular e frequentemente as mãos, por pelo menos 20 a 30 segundos. Higienize as mãos com álcool em gel com frequência.
- Não compartilhe pratos, xícaras, talheres, toalhas ou roupas de cama com ninguém.
- Limpe e desinfete superfícies comuns como maçanetas, balcões e tampos de mesa.
Mas, e para você se tratar de um caso mais simples de COVID-19: o que fazer? De um modo geral, as seguintes recomendações são aplicáveis:
- Fique em repouso.
- Fique em casa. Não vá para o trabalho, escola ou lugares públicos.
- Beba bastante líquidos. Você perde mais água quando está doente. A desidratação pode piorar os sintomas e causar outros problemas de saúde.
- Se os seus sintomas piorarem, entre em contato imediatamente com seu médico. Procure ligar antes de buscar atendimento. Não vá ao consultório/ambulatório/ hospital sem ligar primeiro e se informar. Você poderá ser orientado a ficar em casa, ou ainda, podem ser necessárias tomar medidas extras para proteger a equipe de saúde e outros pacientes.
- Pergunte ao seu médico sobre medicamentos de venda livre que podem ajudar, como o paracetamol, para baixar a febre.
Aqui começam as dúvidas. Foi em março de 2020 que a ideia de usar medicamentos antimaláricos para tratar a COVID-19, a doença causada pelo novo coronavírus, ganhou força nas redes sociais.
Em 17 de março de 2020 um médico francês chamado Didier Raoult, fazendo parte de um grupo de pesquisadores, publicou um artigo sugerindo que uma combinação de hidroxicloroquina e o medicamento antibacteriano azitromicina poderia ser eficaz contra a doença. O estudo posteriormente atraiu uma avaliação mais cuidadosa, inclusive da revista onde foi pré-publicado, e, mais tarde, acabou sendo execrado, pois além de seus aparentes erros e omissões, o desenho do estudo - seu pequeno tamanho, seu controle falho, a atribuição não randomizada de pacientes aos grupos de tratamento e controle - foi considerado de modo abrangente para que seus resultados fossem caracterizados como sem nenhum sentido. O próprio médico é uma figura controversa, mas detém muito poder, sendo diretor desde 2008, da Unité de Recherche sur les Maladies Infectieuses et Tropicales Emergentes. De personalidade forte e arrogante, dá declarações disparatadas, tais como: “Eu inventei cerca de 10 tratamentos na minha vida. Metade deles são prescritos em todo o mundo. Eu nunca fiz um estudo duplo-cego na minha vida, nunca. Nunca! Também nunca fiz nada randomizado”. (Entrevista ao The New York Times, May, 21, 2020).
Em um segundo estudo, Raoult tratou 1.061 pacientes com uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina. O estudo não foi controlado nem randomizado; no momento da liberação do pré-impressão do artigo, oito pacientes morreram e cinco permaneceram hospitalizados, enquanto 46 no total tiveram um "resultado clínico insatisfatório". Os resultados foram resumidos como "98,7 por cento dos pacientes curados até agora." A terapia constituiu um “tratamento seguro e eficiente para Covid-19”, escreveram os autores. Outros cientistas discordaram desta caracterização dos resultados, uma vez que a taxa de cura é quase idêntica ao que foi descrito sobre o curso natural da doença”, sem nenhum tratamento específico. Cientistas franceses disseram que “Raoult não havia demonstrado absolutamente nada" neste estudo.
Demorou apenas alguns dias (19 de março de 2020) para que o presidente americano Donald Trump abraçasse a ideia de que a Cloroquina ou a Hidroxicloroquina poderiam virar o jogo no tratamento desta doença mortal, e apenas mais alguns dias antes de Trump estar ativamente promovendo os medicamentos. Trump chegou a dizer, com sua maneira peculiar de expressar, em uma tradução literal: “Agora, uma droga chamada cloroquina - e algumas pessoas acrescentariam 'hidroxi-' - Hidroxicloroquina. Portanto, cloroquina ou hidroxicloroquina. … É conhecido como medicamento contra a malária, existe há muito tempo e é muito poderoso. Mas a parte boa é que já existe há muito tempo, então sabemos que se as coisas não saírem como planejado, não vai matar ninguém. " No dia 21 de março, Trump voltou a promover estes medicamentos no Twitter. Nos dias que se seguiram, Trump entrou em confronto direto com o Dr. Anthony Fauci, considerado o mais importante especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos, e um dos principais integrantes da força-tarefa criada pela Casa Branca para o combate ao coronavírus.
A insistência de Trump e a busca por um tratamento rápido levou a que o Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos fornecesse autorização para uso emergencial da cloroquina/hidroxicloroquina na COVID-19 em 28 de março de 2020. Na Europa, caixas com comprimidos de cloroquina/hidroxicloroquina alcançaram preços estratosféricos.
De volta para o Brasil: o presidente Bolsonaro, um fã confesso do presidente Trump, assumiu a bandeira da cloroquina/ hidroxicloroquina no nosso país quase de imediato. Um estudo brasileiro foi feito às pressas, tendo resultados animadores do tratamento precoce da COVID-19 usando estes medicamentos. Mas o estudo foi interrompido no dia 11 de abril de 2020, devido a preocupações com os efeitos colaterais. Um hospital na França também interrompeu o tratamento com hidroxicloroquina pois pelo menos um paciente com COVID-19, em uso do medicamento, desenvolveu problemas de ritmo cardíaco.
À medida que aumentavam as evidências de que os medicamentos apresentavam riscos significativos - incluindo evidências provenientes das agências governamentais supervisionadas por Trump, o presidente americano demorou muito mais para responder. Trump chegou a insistir que "tivemos vários resultados muito bons e tivemos alguns resultados que talvez não sejam tão bons" na avaliação do uso dos medicamentos. Mas em 24 de abril de 2020, o FDA dos Estados Unidos fez um alerta público contra seu uso, devido a “sérios problemas de ritmo cardíaco”. É assim que a partir daí o foco de Trump na medicação veio a diminuir. Inclusive, quando ele mais tarde teve COVID-19, não chegou a usar a hidroxicloroquina.
Enquanto isso, de volta ao Brasil, as ideias positivas acerca destes medicamentos continuavam – milhões de comprimidos de cloroquina/hidroxicloroquina foram comprados/manufaturados, e uma imensa energia foi gasta em embates políticos que promoviam o seu uso. De acordo com documentos enviados pelo próprio Exército, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) e o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM) produziram ao todo 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020. A quantidade foi 25 vezes a produção habitual por ano
Dois ministros da Saúde caíram, porque se recusaram a compactuar com as ordens do Presidente para divulgar um tratamento não comprovado cientificamente, até que um militar, um General do Exército acostumado a obedecer a ordens e sem formação científica, assumisse o Ministério da Saúde, e desse prosseguimento à utilização da cloroquina. Enquanto isso, outros países avançavam e se moviam no sentido de obter vacinas contra o coronavírus, além de tomar medidas orientando o distanciamento social, uso de máscaras e orientações uniformes para toda a população – tudo que não era feito no Brasil.
Em novembro de 2020 a revista JAMA (Journal of the American Medical Association) pôs um ponto final na saga da cloroquina/hidroxicloroquina. O Editorial, intitulado (título traduzido) “Uso indevido de hidroxicloroquina para COVID-19 – a intromissão da política na Ciência” pode ser lido AQUI, em seu texto original em inglês.
O texto traz a seguinte conclusão: “A lição clara, inequívoca e convincente da história da hidroxicloroquina para a comunidade médica e o público é que ciência e política não se misturam. A ciência, por definição, requer diligência e uma avaliação honesta das descobertas; política nem tanto. O número de artigos na literatura revisada por pares nos últimos meses que demonstraram de forma consistente e convincente a falta de eficácia de uma "cura" altamente elogiada para COVID-19 representam a consequência da ingerência irresponsável da política no mundo da ciência ... Para outras terapias ou intervenções potenciais para COVID-19 (ou quaisquer outras doenças), isso não deve acontecer novamente”.
Em 11 de janeiro de 2021, o general Eduardo Pazuello assentou-se diante dos senadores brasileiros para uma audiência pública. As imagens das mortes por asfixia nos leitos e dos enterros em série em Manaus corriam o mundo. Não havia nenhum plano detalhado para as medidas de prevenção e tratamento da COVID-19. As vacinas não haviam chegado, e só chegariam, em quantidades mínimas, mais proximamente ao final de janeiro/21. Como se sabe, o general acabou sendo substituído no Ministério da Saúde, e atualmente depõe na CPI do Senado Federal sobre a resposta do Governo Federal à pandemia COVID-19.
Mas, e quanto à situação atual no Brasil? O Presidente e seus seguidores (incluído senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito) continuam alardeando o tal “tratamento precoce” da COVID-19, mesmo nos dias atuais (março de 2021), dizendo que os médicos têm a liberdade de prescrever os medicamentos que desejarem. E mesmo após a publicação, ao longo dos últimos meses, de estudos que demonstram a ineficácia de medicamentos como a cloroquina contra a COVID-19 e a manifestação de entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselhando o uso do remédio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) defende que ainda não há consenso científico sobre o uso dessas drogas no tratamento precoce da doença. Fica a pergunta: em que país estamos vivendo?
Fontes: JAMA. 2020;324(21):2161-2162. DOI: 10.1001/jama.2020.22389.
The New York Times, 21 de maio de 2020
Observação: Texto atualizado em 19 de maio de 2021.
Copyright © 2021 Bibliomed, Inc.
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