Artigos de saúde

08 - Uma agenda para a mudança

Para acabar com a violência contra as mulheres é preciso coordenar estratégias entre muitos setores da sociedade e nos níveis comunitário e nacional. Em alguns países, os programas de saúde reprodutiva assumiram a liderança na resolução dos problemas de violência contra as mulheres. Mas os esforços não podem se limitar ao setor de saúde. Uma verdadeira agenda de mudanças deve incluir a potencialização de mulheres e meninas; a imposição de maiores custos aos agressores; o atendimento das necessidades das vítimas; a coordenação das respostas institucionais e individuais; o envolvimento da juventude; o trabalho com os homens; e a mudança de certas normas comunitárias.

Potencialização de mulheres e meninas

A potencialização das mulheres e meninas é não só uma meta louvável por si só, mas constitui também uma estratégia importante para acabar com a violência. As mulheres nunca escaparão da violência se continuarem dependentes financeiramente dos homens e restringirem seu valor social ao cumprimento dos papéis de esposas e mães. Em muitas partes do mundo, os códigos legais e as práticas habituais ainda tratam as mulheres como cidadãs de segunda classe, negando-lhes o direito à propriedade, a viajar livremente e a ter acesso aos recursos econômicos e produtivos. Em praticamente todos os países as mulheres não têm representação equivalente nos cargos de liderança e suas preocupações específicas raramente são refletidas nas diretrizes públicas. Como resultado, as mulheres não dispõem, freqüentemente, do poder necessário para tomar decisões básicas e fazer escolhas bem informadas sobre a sua própria saúde ou sexualidade (442).

A potencialização é normalmente vista como um processo a longo prazo, ocorrendo nos âmbitos internacional, nacional, comunitário e individual. Sua metas são:

• Eliminar as leis que discriminam as mulheres e crianças,
• Fortalecer a liderança e o poder de decisão das mulheres,
• Aumentar o acesso das mulheres e meninas à educação,
• Aumentar o acesso e controle das mulheres sobre os recursos econômicos,
• Aumentar o acesso das mulheres à informação de saúde e o controle sobre seu próprio corpo,
• Melhorar a auto-estima e a sensação de poder pessoal das mulheres.

No mundo inteiro, as redes de grupos femininos estão lutando para atingir estas metas por meio do ativismo das organizações de base e pela militância, em termos políticos, para mudar as diretrizes e práticas discriminatórias. As organizações de mulheres tem conseguido algumas vitórias importantes. Por exemplo, na última década, 24 países Latino-americanos e caribenhos reformaram suas leis relacionadas à violência doméstica, sobretudo devido à pressão dos grupos femininos (346, 480). Além disso, milhares de ONGs trabalham para aumentar a percepção das mulheres quanto aos seus direitos, utilizando para isso cursos sobre direitos humanos, programas de instrução legal, treinamento sobre gênero, e outros esforços de grupos menores (4, 417).

Maiores custos para os agressores

Uma pesquisa dos EUA mostra que baixaram os índices de violência interpessoal como resultado de diretrizes e leis que provocam o aumento dos custos para os agressores (137). Os países do mundo ocidental sempre dependeram muito do sistema criminal de justiça para atingir esta meta, sendo que muitos países em desenvolvimento passaram a seguir esta política como resultado do ativismo feminino. Pelo menos 53 países já aprovaram legislação específica contra a violência doméstica. Mais de 27 aprovaram leis contra o assédio sexual e 41 consideram agora o estupro matrimonial como um delito (82, 346, 443, 480).

Apesar de haver variações entre elas, a maioria das leis combina os recursos dos mandato de proteção e restrição com a aplicação de maiores penalidades para os agressores. O mandato de proteção permite ao juíz afastar temporariamente o agressor do lar e forçá-lo a submeter-se a sessões de aconselhamento, a tratamento para livrar-se da dependência do álcool e outras substâncias, a pagar pelo sustento da família, ou a uma combinação qualquer destas obrigações. Se o homem violar o mandato de proteção, ele poderá ser preso e encarcerado.

Por outro lado, na maioria dos países, ainda existem barreiras, lacunas e distorções processuais que reduzem a capacidade da lei de refrear a violência e proteger mulheres e crianças (91). As leis são aplicadas por juizes, promotores e policiais do sexo masculino, muitos dos quais compartilham as mesmas atitudes do resto da sociedade, que coloca a culpa da violência nas atitudes das vítimas. Portanto, é necessário não só aprovar leis mas também conscientizar os representantes da polícia, advogados e juizes, além de outros membros do sistema judiciário. Também é necessário ajudar as mulheres a manterem-se informadas sobre o sistema legal para que possam insistir no exercício de seus direitos. Além disso, muitas comunidades exploraram outras formas para aumentar os custos incorridos pelo agressor por seu comportamento violento, entre elas, a humilhação pública, protestos em frente à sua casa ou local de trabalho, ou imposição de prestação de serviços comunitários por parte do agressor (173, 305, 488). (Veja o quadro 1)

Atendimento das necessidades das vítimas

As necessidades das vítimas são complexas. Uma mulher em crise precisa contar com a proteção física, apoio emocional e assistência para resolver problemas tais como pensão alimentícia, guarda dos filhos e emprego. Se ela decidir processar o agressor, ela também necessitará de ajuda para lidar com todos os procedimentos da polícia e dos tribunais. Freqüentemente, o que ela mais necessita é de um ambiente seguro e protetor, que lhe dê tranqüilidade para avaliar suas opções e decidir o que fazer em seguida.

Em muitos países, os defensores dos direitos das mulheres reagiram montando centros de crise ou outros serviços para tratar das muitas necessidades de mulheres e meninas vitimas de abuso. Tais centros incluem geralmente serviços médicos, legais e de orientação, os quais podem estar todos disponíveis em uma só unidade. Alguns serviços são financiados ou administrados pelo governo e outros, pelas organizações femininas ou outros grupos sem fins lucrativos.

Os serviços geridos por grupos femininos são os precursores no uso de grupos de apoio e de sessões de orientação feminina não direcionada, cuja finalidade é potencializar as mulheres. Os grupos de apoio podem contribuir enormemente para reduzir a sensação de isolamento das mulheres, permitindo-lhes desenvolver um entendimento comum da violência e discutir possíveis estratégias para enfrentá-la (408).

Os países desenvolvidos utilizam comumente o sistema de abrigos para proteger as mulheres em crise. Mas os abrigos têm um alto custo de manutenção e exigem que as mulheres e seus filhos abandonem o ambiente a que estão acostumados, inclusive família, amigos e escolas, justamente quando mais necessitam do apoio destes ambientes. Agora, as comunidades estão experimentando com outras formas mais econômicas de aumentar a segurança das mulheres, entre elas, a criação de redes de lares seguros e igrejas que servem de refúgio às mulheres que buscam proteção e apoio. Em países industrializados como a Suécia e os EUA, alguns governos municipais e companhias forneceram às vítimas telefones celulares, dispositivos de alarme e até mesmo cães de guarda para ajudá-las a se protegerem dos parceiros abusivos (360).

Em outros lugares, os governos fizeram experiências com a criação de delegacias de polícia com pessoal exclusivamente feminino-uma inovação que começou no Brasil e se espalhou agora ao resto da América Latina e partes da Ásia (267, 359). Apesar de bem fundamentados na teoria, as avaliações mostram que estes esforços enfrentaram muitos problemas até agora (134, 205, 302, 305, 359, 432).

Apesar da existência de delegacias exclusivas de mulheres contribuir para aumentar o número de vítimas de abuso que se apresentam voluntariamente, muitas vezes as mulheres necessitam de um serviço que não está disponível nessas delegacias, tais como orientação legal e aconselhamento emocional. Além disso, a suposição de que uma policial do sexo feminino será necessariamente mais compreensiva com as vítimas nem sempre é verdadeira. As policiais femininas alocadas às delegacias de mulheres são, às vezes, ridicularizadas por suas colegas, ficando assim desmoralizadas. Para ser viável, esta estratégia tem que ser acompanhada de um treinamento de sensibilização da força policial, de mecanismos para recompensar e legitimar o trabalho e da criação de uma gama mais abrangente de serviços (205, 305, 359).

Coordenação das respostas institucionais e individuais

Na maioria dos países, as mulheres têm que superar muitas barreiras institucionais para conseguir a ajuda de que necessitam (347). Há pouca coordenação entre as várias instituições com as quais interagem as vítimas do abuso, entre elas as instituições de saúde, de bem-estar infantil, além dos órgãos de cumprimento da lei (347, 438). Pior ainda, quando as vítimas buscam ajuda, algumas destas instituições podem reagir de forma indiferente ou até mesmo hostil.

As instituições de todos os níveis do sistema de atendimento do saúde, bem como as instituições comunitárias, são as que melhor podem responder às necessidades das vítimas de abuso, desde que sejam treinadas e organizadas para fazê-lo. Os tipos adequados de respostas dependem do nível e do pessoal da instituição. São várias as pessoas que podem promover relações pessoais não violentas, não só da área de saúde como de outras áreas, entre elas líderes religiosos e comunitários, meios de comunicação de massa e os pais.

Muitos países prepararam planos locais e nacionais para melhorar a coordenação entre os representantes do governo e os defensores dos direitos e para monitorar a qualidade dos serviços oferecidos às vítimas. A Organização Panamericana da Saúde patrocinou um projeto em 10 países latino-americanos para investigar a melhor forma de empreender uma ação coordenada por parte da comunidade. O projeto inclui a criação de conselhos comunitários de coordenação, reformulação das respostas dadas pelas instituições formais tais como a polícia e o sistema de saúde, e criação de grupos de apoio às vítimas e programas de tratamento dos agressores (201, 486). Existe também um projeto semelhante, do qual participam seis outros países, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (224, 311).

Envolvimento da juventude

O comportamento social é aprendido em idade ainda jovem. No mundo inteiro, vários programas estão trabalhando diretamente com os jovens para encorajar formas não violentas de resolução de conflitos, questionar certas normas tradicionais referentes ao gênero, e criar novos modelos de relacionamento saudável, entre eles:

• No México, o Instituto Mexicano de Pesquisa sobre a Família e a População (IMIFAP), uma organização não-governamental, desenvolveu um seminário prático para adolescentes cujo fim é ajudar a prevenir a violência no namoro e nas relações de amizade. O seminário, denominado Rostos e Mascaras da Violência, usa técnicas participativas para ajudar as pessoas jovens a discutir suas expectativas e sentimentos relativos ao amor, sexo e romantismo; a distinguir o comportamento romântico do comportamento controlador; e a entender como os papéis tradicionais dos sexos inibem o comportamento tanto masculino como feminino (142).

• A revista Straight Talk, publicada em Uganda para adolescentes, enfoca os relacionamentos e enfatiza a igualdade dos sexos, os valores positivos e as habilidades interpessoais. Um número recente da revista, intitulado “Um Não quer dizer isso mesmo: Não”, usa o formato de histórias em quadrinhos para discutir a coerção e o abuso sexual. Mais de 115.000 cópias de Straight Talk são distribuídas mensalmente em toda a Uganda e complementadas com a realização de seminários (425). (Veja a figura 1).

• Um grupo canadense, Men for Change, preparou um curso anti-violência denominado “Relacionamentos Saudáveis”. Criado para os jovens do curso secundário, ele inclui três módulos: Como Lidar com a Agressão; Igualdade dos Sexos e Conscientização da Mídia; e Como Manter Relacionamentos Saudáveis (391). (Veja a tabela 7)

Como trabalhar com os homens

A tentativa de mudar o comportamento dos homens é uma parte importante de qualquer solução do problema da violência contra as mulheres. Até o momento, a maior parte do trabalho programático centrado nos homens concentrou-se na criação de programas de tratamento dos agressores. Iniciados nos EUA, estes programas já chegaram à Argentina, Austrália, Canadá, México e Suécia, além de outros países (14, 77, 93).

Nos EUA, os tribunais geralmente exigem a participação dos homens em programas de tratamento ao invés de colocá-los na prisão por abuso doméstico e sexual, se bem que alguns homens também participam voluntariamente. O conteúdo e a filosofia dos programas variam, como também varia sua duração, que pode ser de 3 a 9 meses. A meta principal é levar os participantes a aceitarem responsabilidade por seu comportamento violento e a aprenderem formas não violentas de lidar com seus acessos de ira e seus conflitos interpessoais. Alguns programas tentam confrontar explicitamente as atitudes tradicionaisque determinam papéis fixos para cada um dos sexos e aceitam o domínio do relacionamento por parte do homem (78, 207).

Somente alguns destes programas já foram avaliados com algum rigor. As avaliações sugerem que a maioria dos homens (53% a 85%) que concluem estes programas não pratica a violência física durante até dois anos depois de tratamento (122, 187). Porém de um terço à metade dos homens que começa a freqüentar os programas nunca vai até o fim. Assim, é relativamente pequena a proporção de todos os agressores masculinos que se beneficiam de tais programas de tratamento (122). (Veja a tabela 8)

Além disso, apesar dos homens absterem-se de praticar atos de violência física depois do tratamento, muitos continuam a adotar comportamentos ameaçadores ou coercivos com suas parceiras (122, 439). Mesmo assim, uma recente avaliação dos programas em quatro cidades dos EUA constatou que a maioria das vítimas de abuso se sentia “em melhor situação” e “mais segura” depois que seus parceiros tinham participado de tais programas de tratamento (187).

Outros programas mais recentes estimulam os homens a questionar idéias preconcebidas sobre os papéis dos sexos e sobre a masculinidade e a se tornarem agentes de mudança na comunidade. Nas Filipinas, por exemplo, as organizações não-governamentais usam o treinamento de conscientização sobre gênero como o primeiro passo para promover a organização contra a violência e procuram atuar junto aos maridos abusivos das mulheres que buscam ajuda no centro de crise local (364). No Kenya recentemente, centenas de homens em Nairobi participaram de uma marcha de protesto contra a violência de gênero (138). Outros grupos de homens contra a violência existem no Canadá, Nicarágua, Zimbábue, entre outros países (206, 300, 307, 465). (Veja a figura 2)

Como mudar certas normas da comunidade

Para acabar com a violência, às vezes é preciso mudar certas normas, atitudes culturais e crenças da comunidade que permitem a ocorrência e continuidade do comportamento abusivo dos homens contra as mulheres. Existem várias normas e crenças que são particularmente poderosas na perpetuação da violência contra as mulheres. Estas incluem as convicções de que os homens são por natureza superiores às mulheres, que eles têm o direito de “corrigir” o comportamento feminino, que o espancamento é um modo apropriado para disciplinar as mulheres, que a honra de um homem está ligada ao comportamento sexual de uma mulher, e que os assuntos de família são de âmbito privado, onde outros não devem intervir (210). (Veja o quadro 2)

Os programas criados para mudar estas convicções têm que poder atrair as pessoas à discussão e não afastá-las ao representar os homens como “monstros”. Para encorajar as pessoas a considerarem normas mais condizentes, os programas já usaram técnicas tais como os teatros comunitários e trabalhos em pequenos grupos. No Camboja, por exemplo, o Projeto contra a Violência Doméstica patrocinou uma companhia de teatro ambulante para estimular a discussão sobre a violência doméstica e retratar novos modelos de comportamento. A companhia fez apresentações em 35 aldeias de todo o país, atraindo multidões de 5.000 a 30.000 pessoas (19).

Também pode-se modificar as leis e aprovar programas para melhor proteger as vítimas do abuso, aumentar o custo social para o agressor e influenciar os valores culturais. Mas talvez o mais importante seja mudar as atitudes sociais para permitir que as mulheres assumam o controle de seus próprios corpos, de certos recursos econômicos e familiares e de suas vidas em geral.

Os programas de saúde e outras instituições podem ajudar a mudar a percepção-freqüentemente tão enraizada que se torna inconsciente-de que as mulheres são fundamentalmente de menor valor que os homens. Como disse a ativista de direitos humanos Charlotte Bunch: “Somente quando as mulheres e meninas ocuparem o lugar que merecem como membros fortes e iguais da sociedade, a violência contra as mulheres deixará de ser uma norma invisível, tornando-se, ao invés, uma aberração espantosa” (443). (Edição em portguês: maio de 2002)

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