Artigos de saúde

Lei de Saúde Reprodutiva e Procriação Responsável - O Planejamento Familiar no Brasil

No Brasil de hoje, planejamento familiar é assunto cotidiano, haja vista a freqüente abordagem acerca de temas tais como mortalidade materna, aborto, esterilização, reprodução assistida ou outros relacionados à procriação. O Poder Legislativo também reconhece a importância da matéria e por lá tramitam dezenas de projetos de lei regulamentando ou ampliando dispositivos legais sobre o assunto.

O Sistema Único de Saúde, através do Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher (PAISM), tem buscado a implementação dos direitos de autonomia reprodutiva conquistados pela população brasileira a partir da promulgação da Constituição de 1988.

"Embora avançadas em seus princípios, conteúdos e diretrizes, as políticas públicas propostas pelo Executivo patinam no processo de sua implementação", afirma Dra. Ana Maria Costa, integrante do Núcleo de Saúde e Sexualidade e coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília. "A trajetória histórica do planejamento familiar no Brasil é marcada em grande parte pela ausência das mulheres neste debate.

Desenha-se, ainda, aspectos da complexa conjuntura política e econômica que, por interesse, toma o controle demográfico como estratégia, a partir das políticas ou ausência destas - que definiram, no Brasil, a concreta redução do crescimento populacional confirmado pelos últimos dados censitários", analisa a doutora, também ex-coordenadora nacional do PAISM.

A rigor, o conceito de planejamento familiar não se restringiria apenas aos aspectos procriativos, mas abrangeria o conjunto das necessidades e aspirações de uma família, incluindo moradia, alimentação, estudo, lazer, etc. No entanto, por força do hábito, o conceito de planejamento familiar está hoje circunscrito às questões da reprodução, quando não, apenas àquelas ações de controle da fecundidade, ou anticoncepção.

No plano internacional, a partir das Conferências de População (Cairo - 1994) e da Mulher (Beijin - 1995) surge o conceito de saúde reprodutiva, que diz respeito a ações amplas no campo da reprodução, envolvendo o homem e a mulher. Embora reconhecendo o avanço que representa esta nova abordagem, no caso brasileiro há que se ter cautela visto o consenso estabelecido em torno da integralidade assistencial à mulher, em todas as suas fases e necessidades de saúde. Estes princípios estão contidos na política de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).

Nas décadas de 60 e 70, a argumentação favorável ao controle demográfico no Brasil, sustentava que o crescimento econômico e desenvolvimento só seriam possíveis com intervenções dirigidas à redução do ritmo do crescimento demográfico. A este debate também participava a Igreja, que no final dos anos 70, passou a admitir um certo controle da fecundidade, desde que o método utilizado fosse a abstinência periódica.

Nesta época, as mulheres brasileiras buscavam gradativamente seu espaço no mercado de trabalho, ampliando suas aspirações de cidadania. Controlar a fecundidade e realizar em seu corpo a anticoncepção passa a ser aspiração e desejo das mulheres. As vivências mais plenas da sexualidade, que se processavam nesta época, reforçavam esta necessidade. No entanto os serviços públicos de saúde estavam despreparados para esta demanda.

Essa conjuntura permitiu o surgimento de um novo discurso, baseado nos princípios do direito à saúde e na autonomia das mulheres e dos casais na definição do tamanho de sua prole. Em 1983, o Ministério da Saúde divulga o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que seria desenvolvido pela rede pública de assistência à saúde, ajustando-se às necessidades epidemiológicas e requerimentos de cada localidade.

O PAISM foi apresentado pelo então Ministro da Saúde, Valdir Arcoverde, durante o seu depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava os aspectos do crescimento populacional. Este constituiu-se em um conjunto de princípios e diretrizes programáticas abrangentes, destinadas às mulheres nas diversas etapas e situações de sua vida, incluindo-se a fase reprodutiva.

O PAISM preconiza que os indivíduos sejam atendidos nas suas demandas específicas de saúde reprodutiva, de forma a minimizar riscos para a saúde decorrentes da procriação. Prevê, ainda, além da abordagem para a anticoncepção, tratamento para os casos de infertilidade, sempre contextualizados no conceito da integralidade assistencial.

A conquista do direito ao planejamento familiar está explícita na Constituição Federal de 88, no parágrafo 7 do art. 226. Ali estão estabelecidas as diretrizes a serem obedecidas pelo legislador ordinário, que não deve vincular direito e acesso aos serviços de planejamento familiar às políticas de controle demográfico. Entre estas diretrizes figuram, claramente, a liberdade de decisão do casal e a responsabilidade do Estado em prover recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.

No entanto, apesar do consenso e dos avanços conquistados em torno desta questão, a situação da saúde reprodutiva das mulheres brasileiras ainda está longe de um quadro considerado como aceitável. Ainda em 1986, quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados provenientes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o país tomou conhecimento de que 27% das mulheres em união estável, que usavam algum tipo de controle de fecundidade, estavam esterilizadas cirurgicamente.

A mesma fonte também informou que os métodos contraceptivos mais utilizados pelas mulheres brasileiras eram, respectivamente, a pílula e a esterilização. Para efeito comparativo, na França 6%, na Inglaterra 7% e na Itália 4% das mulheres, na mesma situação, estão esterilizadas.

No Brasil contemporâneo a taxa de mortalidade materna, ou seja, óbitos de mulheres em decorrência da gravidez, do parto ou do puerpério, transitam em torno de 150/100.000 nascidos vivos. Esta taxa é 25 vezes maior que a do Canadá, por exemplo. O uso abusivo da cesariana, além de interferir nesta mortalidade feminina, está diretamente relacionado ao desregramento das altas incidências de esterilizações entre as mulheres. As altas taxas de cesariana que o Brasil exibe estão entre as mais elevadas do mundo.

Tania Di Giacomo Lago, presidente da Área Técnica de Saúde da Mulher em Brasília explica que consolidou-se uma cultura reprodutiva onde, ainda muito jovem, as mulheres, por desinformação e ausência de outras alternativas, incluem em seu projeto de vida a cesariana e a esterilização. "Por esta opção pagam caro, pois além da mortalidade referida herdam seqüelas quase sempre definitivas, aumento da mortalidade perinatal e altas taxas de arrependimento pós-laqueadura.

Os estudos dedicados ao arrependimento pós-laqueadura estabelecem uma relação direta entre esta situação e a desinformação sobre a existência e disponibilidade de outras alternativas contraceptivas, bem como à reversibilidade do procedimento cirúrgico", completa Tânia.

Em resposta à prática indiscriminada da esterilização, o Congresso Nacional instalou, em 1991, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) destinada a investigar a esterilização em massa das mulheres brasileiras. Entre os consensos extraídos dessa CPMI está a necessidade de regulamentação da esterilização cirúrgica e de todas as ações para o planejamento familiar. O caso da esterilização traz o agravante de constituir-se em crime de mutilação previsto no Código Penal, apesar de amplamente praticado.

Tendo tramitado pelas duas casas do Congresso Nacional, o projeto recebeu vetos presidenciais, surpreendendo e indignando toda a sociedade brasileira. No momento, há um movimento para reverter a situação do veto, que, a princípio, deve ser realizado pelo Congresso Nacional. "Enquanto isso, as mulheres seguem negociando, a altos preços, no livre mercado do controle da fecundidade", salienta Maria José De Oliveira Araújo, da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos em São Paulo.

O segundo método mais utilizado entre as brasileiras, de acordo com o que foi apurado na CPMI, é a pílula anovulatória. O uso da pílula se dá em um contexto de alto risco à saúde das usuárias e quase 50% são automedicadas ou têm a indicação no balcão da farmácia. A recente elevação de incidência de doenças cardiovasculares entre as mulheres já começa a ser relacionada ao uso indevido de anovulatórios.

No Brasil, o movimento feminista pela saúde possui grande visibilidade pública a partir de sua centena de grupos distribuídos em todo o território nacional. Dos Comitês de Morte Materna à luta pela implantação dos serviços de atendimento ao aborto legal, as mulheres têm tido um papel fundamental na implementação de ações buscando o ideário da integralidade à saúde.

Copyright © 2000 eHealth Latin America